quinta-feira, 2 de agosto de 2007

Preservação da Identidade da Criança e do Adolescente Infrator

A Lei Federal 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) considera criança a pessoa até doze (12) anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze (12) e dezoito (18) anos de idade. Ademais, o mencionado Estatuto também preceitua que a criança que praticar ato infracional (art. 105) será submetida a medidas legais específicas de proteção previstas no seu art. 101. Já o adolescente que cometer um comportamento conflitante com a lei será submetido a medidas socioeducativas previstas no art. 112 a 125, do Estatuto, para além da possibilidade de aplicação cumulativa das mencionadas medidas legais específicas de proteção.
Entretanto, ao longo da investigação, apuração e aplicação das mencionadas medidas legais tanto à criança quanto ao adolescente que cometeu ato infracional é imperativo a preservação de identidade, imagem, e, sobremodo, da sua própria pessoa, assegurando-lhe de qualquer meio evasivo de comunicação que, sem autorização legal, veicule informações, nomes, atos, documentos, fotografias e ilustrações que possibilitem a identificação dos infantes e dos jovens envolvidos num acontecimento infracional.
O art. 247 do Estatuto da Criança e do Adolescente tem por objetivo precípuo a proteção integral da identidade da criança e do adolescente que cometem comportamento conflitante com a lei, buscando com isso preservar não só seus nomes ou suas imagens, mas principalmente as suas próprias pessoas, pois se encontram na condição peculiar de desenvolvimento – nos termos do que dispõe o art. 6º, daquele Estatuto[1].
O mencionado preceito estatutário, na verdade, não se preocupa tanto com a regulamentação das atividades dos meios de comunicação social – “de massa”, segundo Jean Baudrillard[2] –, mas principalmente com a proteção integral dos direitos individuais de cunho fundamental, inerentes à personalidade da criança e do adolescente que cometeram condutas contrárias à lei.
As informações acerca do nome, acontecimento, fotografia, ilustração ou documentação inerente a procedimento policial, administrativo ou judicial relativo à criança ou ao adolescente a que se atribua o cometimento de ato infracional, permitindo, assim, suas identificações direta ou indiretamente, para além de servir propositalmente à moralização social mantendo, assim, “as massas sob o sentido” – pois “elas querem espetáculo”, segundo Jean Baudrillard[3] –, em pior medida, esvazia a potencialidade de transformação humanitária que tanto a seriedade do conteúdo das circunstâncias existências, quanto à seriedade protetiva do Estatuto da Criança e do Adolescente.
É preciso ter cuidado com as informações acerca da criança e do adolescente infrator, uma vez que aquelas não podem ser divulgadas total ou parcialmente, sem autorização devida, por qualquer meio de comunicação, pois, com isso, procura-se evitar que tais informações se transformem em meras mensagens[4] estereotipadas de uma seqüência espetacular da barbárie, então, mistificadas pela exigência hipócrita de “transparência pública” – mutatis mutandis, é a diretriz protetiva sugerida por Túlio Vianna[5].
A “transparência pública” deve ceder lugar à proteção integral da criança e do adolescente que se envolveram num evento infracional, haja vista que a sua vulnerabilidade material decorrente da condição peculiar de desenvolvimento se acentua com o próprio cometimento de condutas conflitantes com a lei, consoante tem descrito Graciela Sandoval Vargas e Edgar Corzo Sosa[6], os quais têm destacado que “es de suma importancia la garantía y el respeto a los derechos de las personas que por su condición y circunstancias personales se encuentren en situación de vulnerabilidad, especialmente en el caso de menores de edad; ya que éstos, por su falta de madurez física y psicológica, dificilmente pueden protegerse y cuidarse por sí mismos de actos o ataques que atenten contra su desarrolo integral; su dignidad personal, y su integridad física, psíquica y social.”.
A “transparência pública”, assim, deve se render às limitações destinadas à esfera pública da palavra e da ação[7] que caracterizam um Estado democrático (constitucional[8]) e de direito. A preocupação por isso é anterior, pois, cuida-se da preservação da personalidade humana daquelas crianças e adolescentes e do correlativo direito individual fundamental que importa na não exclusão social, evitando-se, assim, a expulsão comunitária ainda que se opere simbolicamente através de informações diretas e indiretas veiculadas como “simples valor de uso”[9] economicista do social, isto é, pela captação de altos índices de assistência sugestionável[10] (denominada na gíria de “ibope”) para venda de espaços e tempos comerciais destinados à propaganda de serviços e ou de produtos.
Não se impõe aqui a exigência de comprovação da exposição a vexame ou a constrangimento de crianças ou adolescentes – art. 232, do Estatuto – em decorrência mesmo de sua identificação pessoal como autores do comportamento contrário à lei. A objetividade estatutária é precisamente inversa ao valor economicista do social como valor de uso, ou seja, o que se busca é a inclusão, o respeito, o acolhimento, o cuidado, enfim, a proteção integral da criança e do adolescente independentemente do comportamento que tenham praticado. Enfim, impõe-se tanto quanto possível eliminar condições atentatórias à dignidade daquelas pessoas que se encontram na condição peculiar de desenvolvimento da personalidade, reduzindo ao máximo as ameaças e violências às suas integridade física, psíquica e social.
Dentre as medidas legais previstas no art. 247 do Estatuto, destacam-se as previstas no seu § 2º, as quais, para além da reação estatal de cunho repressivo-punitivo (“Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência”), determinam a apreensão da publicação, a suspensão da programação da emissora e também da publicação do periódico.
Os órgãos de imprensa e as emissoras de rádio e de televisão enquanto veículos de comunicação social devem oferecer importantes contribuições para a discussão de questões e temáticas que interessem à coletividade possibilitando, assim, o esclarecimento da opinião pública para que também participe da construção da democracia. Oswaldo Ferreira de Melo[11] entende que para a opinião pública se transformar numa legítima representatividade, por certo, “exige alguns requisitos do ambiente em que se desenvolve, como liberdade de expressão, publicidade dos atos do Governo, do Parlamento e do Judiciário e condição de formação e expressão da cidadania.”.
Neste sentido, Edmundo Oliveira[12] destaca que a legislação estatutária procura preservar “o futuro e o bom conceito da criança e do adolescente a que se atribua ato infracional”, evitando-se, com isso, a execração pública injusta e prejudicial, haja vista que não estão suficientemente formados, senão, que uma tal exposição pública certamente os denegrirá para sempre.
A representação da realidade pela mídia é limítrofe entre a ficção e a realidade, ou seja, “o que é real e o que não é real naquilo que a mídia apresenta?”, segundo Tomás Barreiros[13]. Por isso, a divulgação e ou exibição parcial, total, direta ou indiretamente de nome, ato, documento, fotografia e ilustração, sem autorização devida, de forma a permitir a identificação de criança ou de adolescente que cometeu ato infracional, para além de “contribuírem para criar um efeito de sentido de verdade”[14], vale dizer, aparência de uma verdade, insofismavelmente, depõem culturalmente contra os valores humanitários da matéria prima da futura sociedade brasileira. Isto é, depõem diretamente contra todas as crianças e adolescentes, pois exalta especificamente uma versão montada do “mal” sem jamais se preocupar com o encontro do “bem”.
O art. 143 do Estatuto da Criança e do Adolescente, por isso, proíbe a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional, impedindo-se, assim, que qualquer notícia a respeito do fato possa identificar a criança ou adolescente, quando, não, “vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome.”.
O “bem” aqui pode ser exatamente a atitude a ser evitada, isto é, a divulgação e ou exibição acima mencionadas, construindo-se, por assim dizer, uma “ética das verdades”, segundo Alain Badiou[15], para quem a “ética combina então, sob o imperativo: ‘Continuar!’, um recurso de discernimento (não se prender aos simulacros), de coragem (não ceder) e de reserva (não se dirigir aos extremos da Totalidade).”.
A Constituição da República de 1988 também resguardou o indispensável sigilo acerca de tais informações ao preceituar no inc. LX do seu art. 5º que “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”, protegendo, inclusive, com isto, “crianças e adolescentes que houvessem sido vítimas”[16] de atos infracionais, crimes e ou de quaisquer outras formas de violência.
Até porque, não se trata aqui de censura ou mesmo restrição limitativa ao exercício do direito à liberdade de expressão, opinião, informação, comunicação, palavra, pois não se proíbe a divulgação da notícia, como bem ressalta Jorge Araken Faria da Silva[17], mas, sim, tem-se a intenção de proteger integralmente a criança e o adolescente dos excessos de publicidade.
A proteção do sigilo das informações acerca da criança e do adolescente que se envolveram num acontecimento infracional, destina-se, assim, a preservar respectivamente as identidades daquelas pessoas que se encontram na condição peculiar de desenvolvimento da personalidade, obstando a exposição estigmatizada e a conceituação preconceituosa que macule a imagem e a reputação não só daqueles infantes e jovens, mas, também de seus respectivos núcleos familiares.
[1] BRASIL, Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente.
Art. 6º. Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
[2] BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. Trad. Suely Bastos. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 10 e ss.
[3] BAUDRILLARD, Jean. Op. cit. De acordo com o Autor, a grande maioria silenciosa não tem mais história a escrever, pois a sua força atual limita-se ao silêncio “ocultando o desabamento central do sentido com uma recrudescência de todas as significações e com uma dissipação de todos os significantes.”.
[4] BAUDRILLARD, Jean. Op. cit. Para o Autor os meios de comunicação identificam e atendem precisamente os anseios “das massas”, pois “elas ‘farejam’ o terror simplificador que está atrás da hegemonia ideal do sentido e reagem à sua maneira, reduzindo todos os discursos articulados a uma única dimensão irracional e sem fundamento, onde os signos perdem seu sentido e se consomem na fascinação: o espetacular.”.
[5] VIANNA, Túlio. Transparência pública, opacidade privada: o direito como instrumento de limitação do poder na sociedade de controle. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 203 e ss. Segundo o Autor, “o princípio da transparência pública veda qualquer monitoração eletrônica ou captura e armazenamento de dados pessoais de caráter secreto. (...) o princípio da transparência pública veda a existência de qualquer banco de dados secretos com informações pessoais e tem como corolário o direito à informação. (...) A autarquia de defesa da privacidade deverá velar na esfera administrativa pela fiel observância do princípio da transparência pública, o que não exclui porém a apreciação do poder judiciário”.
[6] SOSA, Edgar Corzo e VARGAS, Graciela Sandoval. Criterios jurídicos de las recomendaciones de la comissión nacional de los derechos humanos (1990-2005). México: Universidad Nacional Autónoma de México; Comissión Nacional de Derechos Humanos, 2006, p. 9 e ss. (Instituto de Investigaciones Jurídicas, Série Estudios Jurídicos, nº 92).
[7] ARENDT, Hannah. A condição humana. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
[8] CADEMARTORI, Sérgio Urquhart de. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.
[9] BAUDRILLARD, Jean. Op. cit. O Autor assevera que o “limite do valor economista do social como valor de uso é na verdade o valor ecologista do social como abrigo. (...) Uma espécie de espaço fetal de segurança que provê em toda parte a dificuldade de viver, que fornece em toda a parte a qualidade da vida, isto é, para tal segurança todos os riscos, o equivalente da vida perdida – forma degradada da sociabilidade lubrificante, assistencial, pacificante e permissiva –, a forma mais baixa da energia social: a de uma utilidade ambiental, comportamental – essa é a nossa imagem do social – forma entrópica –, outra imagem de sua morte.”.
[10] ZACHARIAS, Manif. Dicionário auxiliar de composição literária. Florianópolis: Garapuvu, 2006, p. 56. Segundo o Autor, por assistência pode ser entendido o conjunto de espectadores que na concepção literária é sugestionável, crédulo, deslumbrado quando se tratar por característica decorrentes de possíveis correlações adjetivas.
[11] MELO, Osvaldo Ferreira de. Temas atuais de política do direito. Porto Alegre: Safe; CMCJ-UNIVALI, 1998, p. 23 e ss. O Autor não olvida que a opinião pública para além de seu caráter fenomenológico, também é “uma importante forma de controle social ou seja um elemento considerável da interação social. De qualquer forma, quer considerada como verdade geral, ou como termo de controvérsias, é fenômeno que só pode ser considerado num Estado democrático e pluralista. (...) A opinião pública, por ser fenômeno cultural, tem um caráter relativo, pois muda conforme as circunstâncias que assim o determinam. (...) É em geral produto da informação e, mais que isso, da experiência.”.
[12] SILVA, Antônio Fernando do Amaral, MENDEZ, Emílio Garcia e CURY, Munir (Coords). Estatuto da criança e do adolescente: comentários jurídicos e sociais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 740 a 743. Eduardo Oliveira comentando o art. 247 do Estatuto esclarece que “para resguardar desses males a criança ou adolescente, a lei proíbe a exibição de fotografia do autor de ato infracional ou de qualquer ilustração (desenhos, pinturas) que lhe diga respeito, desde que possa levar a identificá-lo. Infelizmente, este preceito sempre foi desobedecido e todos os dias se vê estampada em jornais a fotografia do autor do ato infracional, apenas com uma tarja sobre os olhos.”.
[13] BARREIROS, Tomás. Jornalismo e construção da realidade: análise de O “mez da grippe” como paródia crítica do jornalismo. Curitiba: Pós-escrito, 2003, p. 103 e ss.
[14] BARREIROS, Tomás. Op. cit. O Autor assinala que “as notícias, as fotografias, os documentos oficiais e o depoimento da testemunha dos fatos (Dona Lúcia) são apresentados como verdadeiros e contribuem para criar um efeito de sentido da verdade. Entretanto, as contradições internas do depoimento de Dona Lúcia (...) para tomar o leitor de surpresa nessa desmontagem da aparência de verdade do depoimento (...) colocam em xeque a validade do discurso jornalístico, que se apresenta como reprodução do real. (...) para a semiótica discursiva, trata-se, na realidade, de fazer crer ser objetivo, criando o efeito de sentido de objetividade”.
[15] BADIOU, Alain. Ética um ensaio sobre a consciência do mal. Trad. Antônio Trânsito e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, p. 98. O Autor destaca que “é no cerne dos paradoxos dessa máxima que nós encontramos, assim dependente do Bem (as verdades), a verdadeira figura do Mal, em suas três espécies: o simulacro (ser o fiel aterrorizante de um falso acontecimento), a traição (ceder em uma verdade em nome de seu interesse), o forçamento do inominável, ou o desastre (crer que a potência de uma verdade é total).”.
[16] SIQUEIRA, Liborni (coord.). Comentários ao estatuto da criança e do adolescente. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 129.
[17] SILVA, Antônio Fernando do Amaral, MENDEZ, Emílio Garcia e CURY, Munir (Coords). Estatuto da criança e do adolescente: comentários jurídicos e sociais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 434 a 441. O mencionado Autor ao comentar o art. 143 do Estatuto destaca que “sempre se proibiu a divulgação de atos e termos referentes a menores, sobretudo se lhes atribuía autoria de infração, mas as proibições viram-se sempre burladas, de uma forma ou de outra.”.

Nenhum comentário: