terça-feira, 18 de setembro de 2007

Política Criminal: Legitimidade versus Legalidade

A legitimação do sistema penal brasileiro – que compreende não só o Sistema de Justiça Penal, mas, também, as regras substanciais e processuais, bem como suas respectivas dogmáticas (“saberes oficiais”) – perpassa por múltiplos processos de justificação formal e material discursivamente autorizadores, por assim dizer, da força (violência) que se opera através da intervenção estatal repressivo-punitiva cada vez mais amplificada, ainda, que, apenas se projete simbólico-preventivamente[1]. Isto é, as inúmeras leis penais criminalizantes por mais recrudescidas que se apresentem para o ilusório combate à “criminalidade”, por certo, apenas desempenham função simbólico-preventiva, pois raramente são aplicadas, servindo, assim, verdadeiramente, como ameaças socialmente percebidas ainda, que, muito pouco sejam aplicadas aos casos legais.
Por isso, é fácil perceber que a função simbólico-preventiva do sistema penal brasileiro, certamente, não depende da efetiva aplicação das legislações penais e processuais penais mais recrudescidas, haja vista que esgotam sua potencialidade intimidatória no próprio procedimento de legalização de tais regras, senão, agora, a partir da “ameaça de ameaças” aos direitos fundamentais através de proposições legislativas – projetos de lei e propostas de emenda constitucional – que relativizam até mesmo direitos fundamentais – como, por exemplo, a admissão pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado da República da discussão acerca da redução da idade de maioridade penal[2].
O próprio legislador já se apercebeu disto passando, então, a manejar proposições legislativas que independentemente de sua eventual transformação em lei, aplicabilidade ou mesmo efetivação jurídica ou social, atua, funcionalmente, como resposta rigorosa aos casos pontuais eleitos pelos veículos de comunicação social como acontecimentos determinados como relevantes.
O grande poder atualmente dos grupos de pressão – dentre eles os que se fundam a partir do jurídico e dos meios de comunicação social (de massas[3]) –, certamente, localiza-se no “poder de agenda”, isto é, de conseguir agendar assuntos que passam a se constituir em pautas públicas, transformando, assim, questões localizadas em interesses que passam a ser pertinentes a todo grupo social, impondo, pois, ao espaço público privilegiado para o debate da palavra e da ação, determinada temática que, no fundo, apenas tem o condão de deslocar a atenção acerca das verdadeiras questões sociais que por seus conteúdos mereceriam, sim, prioritário tratamento nas esferas públicas dos poderes democraticamente constituídos.
Já a idéia de legitimidade perpassa pela consagração jurídica e política do que se entende por Estado Constitucional de Direito, no qual toda e qualquer expressão da responsabilização penal para além de pretender proteger bens jurídicos, deve, sim, fundamentalmente, possibilitar a efetivação democrática de limitação da intervenção estatal, principalmente, de cunho repressivo-punitivo, ainda, que, apenas opere na dimensão simbólico-preventiva – seja na formulação da regra jurídico-penal, seja na sua aplicação, evitando-se, assim, ao máximo, a eleição de quaisquer outras vias penalizantes (criminalizantes) que se circunscrevam tão somente no marco do controle sócio-penal violento autorizado por processos de “legitimação”.
Mutatis mutandis, é possível dizer com Ana Lúcia Sabadell[4] que “embora a legitimidade e a ‘justiça’ não possam ser deduzidas da legalidade nem para o sistema jurídico da época nem para o atual, a legalidade cria, sabidamente, efeitos de legitimação.”.
A legitimidade difere assim da legitimação, isto é, do processo categorial de legitimação da utilização da força (violência) para o controle sócio-penal, precisamente, por coincidir com a possibilidade democrática de limitação da intervenção pelos poderes públicos, a qual se impõe pelo reconhecimento às convenções paritariamente adotadas através de opções políticas que se vincularam aos princípios fundamentais incorporados constitucionalmente para a (re)organização social e (re)estruturação do Estado brasileiro – como, por exemplo, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana –, os quais demandam respeito e responsabilidade de todos. Com efeito, tem-se que a questão central vinculada ao tratamento legítimo e legal da violência urbana encontra melhor resolução na (re)organização social para efetivação da “democracia real”, como propõe Juarez Cirino dos Santos[5], do que propriamente no estabelecimento de políticas penais meramente criminalizantes, haja vista que “nenhuma política criminal substitui políticas públicas de emprego, de salário digno, de moradia, de saúde e, especialmente, de escolarização em massa da população, a única riqueza do Estado, como organização política do poder soberano do povo.”.
Notas

[1] SABADELL, Ana Lúcia. Tormenta juris permissione: tortura e processo penal na Península Ibérica (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Revan; Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 383 e ss. (Coleção Pensamento Criminológico, nº 13).
[2] RAMIDOFF, Mário Luiz. Repúdio à responsabilização penal de adolescentes infratores. BDJur, Brasília, DF. Disponível em: . Acesso em: 16 maio 2007. Pontuava-se, então, que a “redução da idade de maioridade penal para 16 anos circunscreve-se no marco sensacionalista que, diante da opinião pública, ilusoriamente produz o falso sentimento de segurança para contenção da violência urbana. Contudo, tal desordem social não será solucionada pela simples mutação legislativa que pretende reduzir a idade de maioridade penal. (...) É preciso ter capacidade de se indignar e resistir civilmente aos avanços do binômio funcionalista-utilitarista de cunho repressivo-punitivo de um Direito Penal inconseqüente socialmente, o qual não tem qualquer compromisso com a melhoria da qualidade de vida individual ou comunitária do adolescente, da vítima e de suas respectivas famílias.”.
[3] BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. Trad. Suely Bastos. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. De acordo com o autor, “o social regride na própria medida do desenvolvimento das instituições. O processo acelera e atinge sua extensão máxima com os meios de comunicação de massa e com a informação. Os mídia, todos os mídia, e a informação, qualquer informação, funcionam nos dois sentidos: aparentemente produzem mais social e neutralizam profundamente as relações sociais e o próprio social. (...) A lógica não é mais a da troca de valor. É a do abandono de posições de valor e de sentido. (...) Só esta reversão pode dar fim ao poder, ao sentido, ao valor, e nunca alguma relação de forças, por mais favorável que seja, pois esta se reproduz numa relação polar, binária, estrutural, que recria por definição um novo espaço de sentido e de poder.”.
[4] SABADELL, Ana Lúcia. Op. cit.
[5] SANTOS, Juarez Cirino. Direito penal: parte geral. 2ª ed. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007, p. 708.

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